Taylor Swift e o Spotify: a remuneração dos artistas na era do streaming

João Victor de Araujo
10 min readDec 12, 2020

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Foto: Beth Garrabrant

Com a chegada do evermore, resolvi ressuscitar um texto que havia escrito na época do lançamento do folklore sobre a remuneração nas plataformas de streaming, focando na relação da Taylor Swift com o Spotify, e compartilhar aqui no Medium. :)

A música ficou grátis?

Lançado em 2008, o Spotify se transformou em sinônimo não só de serviço de streaming, mas também da música em si ao longo dos últimos doze anos, tornando a startup sueca em uma das gigantes do mercado musical.

Para entender a expansão acelerada do serviço e o seu sucesso, é fundamental se considerar que a plataforma começou a ser desenhada ainda em 2006 como uma resposta direta ao problema da pirataria, que marcou e transformou a indústria fonográfica nas décadas de 1990 e 2000. Daniel Ek, co-criador do serviço, destacou esse esforço em uma entrevista ao The Telegraph:

a única maneira de resolver o problema [da pirataria] era criar um serviço melhor do que a pirataria e ao mesmo tempo compensar a indústria da música”.

Essa necessidade de uma resposta à pirataria surge da concepção da indústria fonográfica tradicional estadunidense como aquilo que Lawrence Lessig — acadêmico, ativista e um dos fundadores da Creative Commons — define como Read Only: “uma cultura menos acostumada em ‘performance’, ou criatividade amadora, e mais confortável (pense em: um sofá) com o simples consumo.

Isso decorre, em partes pela profissionalização no decorrer do século XX deste setor como nunca antes visto, assim como pela concentração e centralização de sua produção.

Lessig ainda evidencia que o impacto sofrido pelas gravadoras e distribuidoras quando confrontadas com a pirataria — fruto direto do espírito da cultura livre que marcou os anos iniciais da internet, que levou a uma queda nas vendas que diminuiu em quase 50% o total das receitas geradas pelo consumo de música[4] nos Estados Unidos — as levou a abraçarem o sistema do iTunes e suas cópias protegidas através de DRM[5] e as limitações trazidas para a distribuição e compartilhamento desses arquivos.

A iTunes Music Store foi a prova. Lançada em 2003, mais de 1 bilhão de músicas foram baixadas em três anos, 2,5 bilhões em quatro.

E embora a música do iTunes fosse digital, os tokens da cultura digital do iTunes continham uma tecnologia para limitar sua (re)distribuição. Programação […] foi usada para reconstruir o código de símbolos digitais da cultura RO. Esse código refeito foi o suficiente para que uma relutante indústria de conteúdo colaborasse. — Lawrence Lessig em Remix: Making Art and Commerce Thrive in the Hybrid Economy​, 2008.

Desta forma, quando lançado, o Spotify logo foi abraçado não apenas por uma parcela do público, como também pelas gravadoras e artistas, que encararam o serviço como uma evolução dessa estratégia digital construída principalmente com base no iTunes.

À medida que artistas e gravadoras procuravam novas fontes de receita, a importância dos vídeos virais, dos direitos de edição, dos serviços de streaming e dos circuitos de turnês e festivais aumentava cada vez mais. Em 2011, pela primeira vez desde a invenção do fonógrafo, os americanos gastaram mais dinheiro com música ao vivo do que com música gravada. Em 2012, as vendas de música digital na América do Norte ultrapassaram as de CDs. Em 2013, as receitas geradas pela assinatura e pela venda de anúncios dos serviços de streaming pela primeira vez ultrapassaram 1 bilhão de dólares. As indústrias criativas agora lutavam para obter acordos de licenciamento para o streaming de mídia. — Stephen Witt em Como a música ficou grátis (compre o livro), 2015.

Entretanto, esta trajetória de sucesso do Spotify é marcada também por conflitos e problemas com artistas e gravadoras, especialmente envolvendo questões referentes à remuneração dos artistas.

Dos 299 milhões de usuários ativos no Spotify, o que os torna o maior streaming de áudio do mundo, apenas 138 milhões efetivamente pagam pelo uso da plataforma; os outros têm acesso às mais de 60 milhões de faixas disponíveis no Spotify graças às propagandas disponíveis no serviço, num modelo de negócios comum em empresas digitais denominado freemium. E esta precificação do serviço reflete diretamente na forma como os artistas são pagos pela plataforma, já que quanto menor o número de assinantes, menor o valor que existe para ser distribuído.

Mas o streaming não resolvia tudo. Pode não ter resolvido nada. As plataformas de streaming de música eram eternos ralos de dinheiro, gastando montantes insustentáveis no licenciamento de conteúdo para atrair os primeiros usuários. Apesar desses gastos, artistas com milhões de execuções recebiam cheques de apenas centenas de dólares. Em 2013, com um clima de otimismo na economia, as receitas totais da indústria fonográfica voltaram a cair, alcançando o nível mais baixo em trinta anos. As pesquisas mostravam que os novos clientes do Spotify paravam de piratear quase que por completo. Por outro lado, também paravam de comprar álbuns. As gravadoras agora encaravam uma guerra difícil em duas frentes, com os serviços de streaming de um lado e os piratas do outro.” — Stephen Witt

De forma geral, o pagamento dos royalties devidos pela plataforma acontece da seguinte forma: a soma do valor arrecadado por meio das assinaturas e propagandas é reunido pela empresa em um único montante e, a partir disso, a plataforma divide o valor total entre os detentores de direitos autorais com base no que os streams de cada artista representam no número total de reproduções registradas na plataforma naquele período. Um levantamento da SoundCharts em junho de 2019 — uma das principais empresas de monitoramento e inteligência do mercado musical — estabeleceu U$0,00318 como o valor médio do stream no Spotify naquele período, ou seja, a cada mil reproduções, o detentor dos direitos autorais da música receberá 3,18 dólares, que serão divididos entre artista, gravadora e distribuidora.

Esse modelo de remuneração, aplicado às mais diversas plataformas digitais, atraiu críticas de alguns dos principais artistas da indústria, como de Thom Yorke, que chegou a retirar sua discografia do streaming e lançar seu disco Tomorrow’s Modern Boxes (2014) diretamente no BitTorrent, e de Jay-Z. O rapper foi além nas críticas aos serviços de streaming ao lançar sua própria plataforma, o Tidal, focada em reprodução de música em alta qualidade e que promete uma remuneração mais justa aos artistas. Na época do lançamento, o artista comentou a questão em uma entrevista concedida para a Billboard:

As pessoas não estão respeitando a música, estão desvalorizando o que ela realmente significa. As pessoas realmente acham que a música é de graça, mas pagam US$ 6 pela água. Você pode beber água de graça da torneira, e é uma boa água. Mas eles acham okay em pagar por isso. É apenas o mindset de agora. — Jay-Z

E a Taylor entrou na briga

Foto: Beth Garrabrant

Uma das principais vozes de sua geração, com uma série de canções e álbuns que atingiram o topo da Billboard Hot 100, a cantora e compositora Taylor Swift se tornou o rosto desta briga entre os artistas e os serviços de streaming e tocou na questão várias vezes. Dentre suas batalhas, destaca-se a com o Apple Music, na qual conseguiu que a plataforma revisasse sua política inicial de oferecer um período de teste gratuito de três meses para os usuários, no qual os artistas não seriam remunerados por estas reproduções.

Em julho de 2014, Swift escreveu um artigo de opinião para o The Wall Street Journal sobre a sua visão sobre o futuro da música, tocando também na sua perspectiva sobre o streaming e defendendo os álbuns em um cenário que começava a ser dominado pelas playlists:

Música é arte, e arte é importante e rara. Coisas importantes e raras são valiosas. Coisas valiosas devem ser pagas. É minha opinião que a música não deveria ser gratuita, e minha previsão é que artistas e suas gravadoras algum dia decidirão qual é o preço de um álbum. Espero que eles não se subestimem ou menosprezem a sua arte.

No mesmo ano, a artista ignorou o serviço de streaming sueco ao lançar seu álbum 1989 no mês de outubro, não adicionando-o à plataforma. Na semana de lançamento deste disco, Taylor Swift foi além e retirou toda a sua discografia do Spotify. Em entrevista ao Yahoo Entertainment, a cantora abordou a questão referenciando o Spotify como um experimento e que, embora seguisse acompanhando a evolução do streaming, ela não estava disposta a colocar o seu trabalho em uma plataforma que não reconhecia e recompensava os artistas de uma maneira justa.

Tudo o que posso dizer é que a música está mudando tão rapidamente, e a própria indústria musical está mudando tão rapidamente, que tudo novo, como o Spotify, parece um pouco como um grande experimento. E não estou disposta a contribuir com o trabalho da minha vida para um experimento que não sinto que compensa de forma justa os escritores, produtores, artistas e criadores dessa música. E eu simplesmente não concordo em perpetuar a percepção de que a música não tem valor e deve ser gratuita.

Eu procuro ficar com a cabeça bem aberta em relação às coisas, porque acho que é importante fazer parte do progresso. Mas eu acho que ainda está em debate se isso é progresso real ou se isso está retirando a palavra ‘música’ da indústria musical.

Eu senti como se estivesse dizendo aos meus fãs: ‘Se você criar música algum dia, se você criar uma pintura algum dia, alguém pode simplesmente entrar em um museu, tirá-lo da parede, arrancar um canto dele, e agora é deles e eles não precisam pagar por isso’.

Após isso, os discos da Taylor Swift seguiram fora da plataforma até retornarem em junho de 2017, motivado principalmente por um acordo firmado entre sua distribuidora, a Universal Music Group, e o Spotify, que permitia, dentre outras coisas, que os artistas tivessem janelas diferentes para lançamento do disco entre usuários pagos e gratuitos. Soma-se ao acordo, as tentativas constantes de diálogo promovidas pela plataforma com a equipe da artista de forma a apresentar o Spotify e o seu modelo de negócio, incluindo uma viagem de Swift a Estocolmo, onde fica o escritório principal da startup.

Além disso, o streaming se estabeleceu como o principal formato de consumo de música nesse ínterim: Em 2016, pela primeira vez, o streaming foi a principal fonte de receita da indústria fonográfica estadunidense, representando 51% do total das receitas daquele ano. Este aumentou levou ainda a um crescimento total de 11% do faturamento em relação ao ano anterior, maior taxa de crescimento registrada desde 1998.

Apesar do aumento das vendas do vinil e do retorno de algumas mídias físicas, como o K7, dados da RIAA sobre o mercado dos Estados Unidos apontam que o streaming é o responsável por 79% das receitas totais geradas pelo consumo de música em 2019.

Receita da indústria fonográfica dos Estados Unidos em 2019

Dentro deste cenário, em que o streaming tomou de vez o cenário musical, torna-se difícil que artistas pop deem-se ao luxo de dispensar estes serviços, ainda que contem com grande público. Tanto isto é verdade que a própria Taylor Swift lançou seus últimos três álbuns — Lover (2019), folklore e evermore (2020) — também nestas plataformas, sem qualquer tipo de atraso em relação às cópias físicas.

Pelo contrário, seus dois projetos mais recente foram lançados de maneira surpresa e, por isto, ficaram disponíveis primeiro nas lojas digitais, como a iTunes Store, e nos serviços de streaming.

Embora disponíveis na loja da artista junto com o anúncio surpresa, as cópias físicas foram produzidas apenas posteriormente para evitar vazamentos. Isto não impediu que os álbuns fossem um sucesso em ambos os formatos: apenas 24 horas depois do seu lançamento, o folklore vendeu 1,3 milhão de cópias físicas e digitais ao redor do mundo e atingiu mais de 80,6 milhões de streams no Spotify e outros 35,4 milhões no Apple Music

Foto: Beth Garrabrant

I think she did it and I can prove it…

Se Swift enxergava os streamings — em especial, o Spotify — como um grande experimento em 2014, hoje é difícil sustentar a mesma visão considerando os números alcançados por essas plataformas nos últimos anos, especialmente o fato de que se tornaram a principal fatia da receita conquistada pela indústria fonográfica não apenas nos Estados Unidos, mas também globalmente (46,8%), como aponta o relatório de 2019 da principal organização da indústria fonográfica, a IFPI. Desta forma, não estar presente nesse tipo de plataforma, que agora é onde o consumo de música acontece principalmente, criaria dificuldades no consumo de sua música, que poderia trazer dificuldades na renovação e na manutenção da sua base de fãs e do fator de descoberta de seu trabalho por novos públicos.

Essa mudança de postura da artista também é indissociável da posição em que ela ocupa na indústria. Sendo uma das principais artistas do cenário pop atual e estando inserida dentro de uma grande gravadora e de um dos principais conglomerados de entretenimento relacionado à música, o Universal Music Group, seu poder de negociação permite que ela negocie suas demandas diretamente com a plataforma e faça suas demandas serem ouvidas e, mesmo que parcialmente, atendidas.

Ou seja, ainda que não consiga reestruturar toda a indústria ou gerar acordos que beneficiem igualmente artistas independentes ou de pequenas gravadoras, Swift, com sua posição privilegiada e força nas redes sociais, somada a uma base de fãs ardorosa e barulhenta, conseguiu chacoalhar as plataformas o suficiente para encontrar o seu futuro nessa indústria cada vez mais algoritmizada. Assim, Taylor Swift mantém-se como uma das principais protagonistas da música americana na era do streaming, mas nos seus próprios termos.

evermore, novo disco de Taylor Swift, já está disponível no Spotify e nas principais plataformas de streaming.

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João Victor de Araujo
João Victor de Araujo

Written by João Victor de Araujo

Graduado em Editoração, apaixonado por museus, leitor e eternamente em busca de playlists.